sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Memórias

"Milhões de imagens foram destruídas desde o advento da fotografia, inúmeras em virtude de catástrofes e guerras, porém, a maioria, certamente, pela própria vontade do homem. Desaparecidos os referentes, ficaram apenas as representações. Essas ainda são mantidas pelos descendentes mais próximos, até o momento em que, mais tarde, passam a ocupar demasiado espaço nas casas dos descendentes afastados; em épocas mais recentes essas imagens já se constituem, efetivamente, num estorvo: vidros partidos, fundos dos quadros furados, molduras lascadas, manchas e mofos... Além dos avós jovens na clássica pose da cerimônia matrimonial ou do bisavô na idade do colégio, alguns tios afastados, primos de alguém que alguém da família conheceu, não se sabe bem quem, nem onde... amigos de amigos, sem nome e sem lembrança. Inúmeros estranhos e mais estranhos co-habitando álbuns danificados e velhas caixas de sapatos onde se amontoam cartas saudosas e antigas fotografias.

Essa gente toda, inquilinos desconhecidos da memória, deve ser de alguma forma desalojada, despejada... e o é de várias maneiras: queimada, sumariamente jogada no lixo, vendida em meio a pacotes de jornais velhos, por quilo, ou então arrematada juntamente com bibliotecas para ser vendida por unidade nos sebos ou feiras dominicais, ou adquirida juntamente com o mobiliário das casas pelos antiquários, ou então, desde há muito, perdida nos porões das antigas sedes das fazendas, ou nos armazéns abandonados das fábricas desativadas. Neste processo de deterioração da memória familiar, imagens de pais e filhos, maridos e mulheres, irmãos e parentes se separam definitivamente. Holocausto da representação, ruptura da memória. Entre os sobreviventes da destruição física restam poses e rostos esmaecidos tomados em fundos de quintais desreferencializados. Fantasmas da memória, sem passado e sem futuro."

Do livro 'Realidades e Ficções na Trama Fotográfica', de Boris Kossoy.

Nenhum comentário: